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Museu de arqueologia D.Diogo de Sousa en Braga


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Deuses de pedra

Testemunhas das benesses e favores concedidos pelas divindades aos povos da Lusitânia, as centenas de peças expostas, pela primeira vez, no Museu Nacional de Arqueologia constituem o mais antigo e enigmático espólio arqueológico cultual conhecido em território nacional, cuja cronologia ultrapassa os dois mil anos.

Texto de Mário Robalo
Fotografias de António Pedro Ferreira


Imagem colocadaImagem colocadaNa mesma lápide que dedicou a Bormanicus em agradecimento de um favor concedido, Caius Pompeius Meidugenus rogou também ao salutífero deus que impedisse as crianças de danificarem aquele seu voto de gratidão, para que ele permanecesse para a eternidade. A divindade parece ter levado em conta o pedido, permitindo que o monumento votivo se juntasse agora a mais de três centenas de outras peças — entre aras, estátuas, mosaicos, oratórios, sarcófagos e altares —, todas elas duas vezes milenares e igualmente consagradas aos deuses cultuados no actual território português até à fixação do cristianismo, no século IV. O mais enigmático espólio arqueológico do país sobre a representação do divino é agora mostrado pela primeira vez no Museu Nacional de Arqueologia (MNA), no espaço que pertenceu ao antigo convento dos frades Jerónimos, em Lisboa. Denominada «Religiões da Lusitânia», a exposição «pretende ser uma síntese da obra de José Leite de Vasconcelos, da qual assume o nome, homenageando assim o investigador que em Portugal iniciou o estudo sistematizado dos cultos indígenas e dos que foram introduzidos a partir da presença política de Roma, publicado em três volumes, entre 1897 e 1913», refere o director do MNA, Luís Raposo, recordando que a fundação deste Museu, em 1903, então com o nome de Museu Etnológico Português, deve-se precisamente ao médico Leite de Vasconcelos, razão pela qual «a exposição pretende também ser a comemoração antecipada do centenário daquela iniciativa».

Imagem colocadaImagem colocadaMas, se há cem anos a pesquisa arqueológica não conseguiu identificar mais do que um milhar de peças sobre o culto das divindades no território português que pertenceu à Lusitânia, actualmente o número de exemplares já ultrapassa os cinco mil. Para José Cardim Ribeiro, epigrafista e comissário científico desta exposição, «este facto surge aliado à conjugação de novos instrumentos teóricos de que Leite de Vasconcelos não dispunha, como o desenvolvimento dos estudos de filologia, e que agora permitem não apenas uma releitura do que anteriormente fora estudado como também uma nova interpretação dos materiais entretanto encontrados». Mesmo assim Cardim Ribeiro sustenta: «Há que continuar a aprofundar as investigações arqueológicas nos contextos dos santuários já conhecidos, estudar rituais da Grécia Antiga e do Norte de África, como também os cultos dos Pirenéus e as divindades da Gália, de cujos povos o território da Lusitânia recebeu influências». Para que os resultados sejam «mais eficazes», este historiador defende a necessidade de alargar as componentes científicas da investigação a outras áreas do conhecimento como a antropologia, a historiografia mitológica e a linguística, «que permitirá o estudo comparativo entre as lápides escritas em linguagem verbal e o latim vernáculo». Os arqueólogos não precisam apenas de provas materiais. De contrário nunca se conseguiria identificar a razão pela qual, no século II, Caius Pompeius Meidugenus dedicara uma lápide a Bormanicus, nas Caldas de Vizela, em Guimarães. Mas sabendo-se que o teónimo do deus invocado significa águas quentes, então percebe-se que a sacralização das qualidades da substância resultou na identificação de uma divindade. Por isso é que aquele cidadão da tribo Galéria desejou perpetuar a sua gratidão, depois de ter obtido uma cura termal para si ou para um familiar (a inscrição não o indica). É por monumentos como este que se inicia a viagem pela exposição das «Religiões da Lusitânia». São dedicações a deuses, cuja génese deriva da surpresa provocada pelos «grandes espectáculos naturais» que, como escreveu Leite de Vasconcelos, tanto podem estar associados ao «aspecto majestoso e solitário» dos montes, ao «marulho sempre suave das fontes» ou ainda à presença de «árvores seculares e gigantescas» de um bosque. Por isso é que, junto a uma ara dedicada a Laraucus, a divindade da Serra do Larouco, pode surgir uma outra, mandada fazer por uma mulher, Antonia Rufina, dedicada a uma ninfa, designada por Lupianae.

Imagem colocadaImagem colocadaMas todas estas inscrições só surgem após a ocupação política de Roma, particularmente a partir do ano 25 a.C. Como explica Cardim Ribeiro, os povos que habitavam o território da Lusitânia «não utilizavam a escrita nem a figuração para prestarem homenagem às suas divindades». E é também a influência romana que introduz nos cultos indígenas o panteão romano, provocando mesmo, como salienta Cardim Ribeiro, «deslizes linguísticos do latim, como declinações mal feitas, misturados com vestígios de uma língua falada mas não escrita». Esta situação tem vindo a perturbar as investigações e, como recorda o historiador José d’Encarnação no catálogo da exposição, «o achamento de um monumento com boa legibilidade acarretou, de imediato, a correcção de leitura doutras três epígrafes e veio possibilitar a interpretação de mais seis». E só assim se consegue identificar sítios, atributos das divindades ou o nome e as funções sociais de personalidades... Muito ainda está por desvendar sobre o modo como os povos da Lusitânia se relacionavam com o divino, antes da presença romana. Como reconhece José d’Encarnação, os lusitanos deixaram-se inebriar pelo modo como os romanos tratavam os seus deuses. «No penedo que sempre lhes parecera, pela sua solidez, pela sua localização, um sítio ermo e de mistério, local adequado para, sem pressas nem outros ruídos, se unirem às divindades telúricas, mesmo nesses rochedos as inscrições balbuciantes apareceram», anota o especialista. É que, como reforça o historiador Jürgen Unterman no catálogo da exposição, convém não esquecer que a população autóctone lusitana aprendeu a escrever «como lhes ensinaram os imigrantes latinos, os soldados, os comerciantes, os representantes da administração». Ou seja, «só aprenderam a escrever palavras latinas, achando-se totalmente dependentes de si mesmos quando queriam escrever os seus próprios nomes e os nomes dos seus deuses e deusas», conclui. E o exemplo único que resta da língua pré-romana dos lusitanos pode agora ser admirado na exposição, através do retrato de duas inscrições feitas em dois penedos. Uma, em Lamas de Moledo, surge como pertencendo a uma tribo presumivelmente celta, enquanto na segunda, situada em Cabeço das Fráguas, no vale do rio Zêzere, aparecem dois teónimos, o de uma deusa, Trebaruna, e o de um deus, Revê, e a quem eram oferecidos ritualmente uma ovelha e um touro, respectivamente.

Imagem colocadaImagem colocadaA nova visão da divindade, a oficial, a que foi veiculada pelo culto imperial romano, é representada depois de ultrapassada a Herma bifronte. «Um gesto simbólico, a pretender significar a reunião dos opostos», salienta Cardim Ribeiro, chamando a atenção para a passagem — é esta peça do séc. I que integra o visitante na Roma Eterna e na imponência dos seus cenários cultuais. Daí o primeiro confronto ser feito através de representações (cabeças e busto) imperiais, desde Augusto, do séc. I, a Adriano, no séc. II., governantes proclamados deuses pelos súbditos... E só depois é que surgem os chamados «deuses da tríade capitolina», Júpiter, Juno e Minerva, divindades maiores do panteão de Roma assim denominadas por habitarem o templo assente na colina do Capitólio, na capital do Império. Das suas atribuições e das devoções que lhes eram prestadas neste território romanizado debruçado sobre o Atlântico dão testemunho os 13 monumentos que os arqueólogos conseguiram recuperar. Logo a seguir a guerra e a virtude, com Marte e Vitória. Marte chega a ser representado como um legionário, numa pátera (espécie de taça) recolhida em Carriça, no concelho de Santo Tirso. Outros testemunhos iconográficos não menos surpreendentes para a compreensão do culto doméstico e o fausto que o envolvia são as notáveis esculturas em mármore descobertas na Quinta das Longas, uma antiga quinta agrícola romana, fundada na primeira metade do século I, na freguesia de S. Vicente Ventosa, em Elvas. A notoriedade deste conjunto escultórico — a mais recente e significativa descoberta arqueológica no âmbito da iconografia da gigantomaquia (representação do combate de gigantes contra deuses) — não desmerece perante a memória dos templos públicos, seis ao todo no território que hoje é Portugal, e igualmente representados na exposição. A importância da Quinta das Longas, ainda em fase de investigação, resulta da qualidade escultórica dos vestígios encontrados, cuja cronologia se situa entre os séculos II e III. É que entre os diversos fragmentos de um gigante anguípede ou de um corpo feminino desnudado surpreende a magnificência da figura de Vénus... a deusa protectora de importantes chefes militares, que também assumia a qualidade de progenitora do povo romano. «E como tal as suas estátuas não faltam em edifícios públicos importantes», sublinha o investigador Vasco de Souza no catálogo da exposição. Junto ao fragmento de uma estatueta de Vénus, encontrada em Torre d’Ares, Tavira, deparamos com o Eros cavalgando um golfinho, outra das duas representações do deus do amor, descoberta na vila de Milreu (Faro), onde servia de elemento decorativo na casa senhorial.
Mas não se vivia apenas no enlevo da paixão. A sobrevivência obrigava, por vezes, a recorrer aos deuses da saúde como Esculápio, que tanto aparece a proteger uma casa, na Herdade do Monte da Salsa, em Serpa, como um município, neste caso o de Lisboa. Contudo, o bem-estar físico continuava-se a procurar nas termas, como no caso das Caldas de Monchique, chamadas «Águas Sagradas» por Patulcia, uma devota que cumpriu um voto «de bom grado e com razão». De igual modo a protecção do lar tinha de ser acautelada, e estava a cargo dos Lares, como o próprio nome indicia a sua função. Para os romanos «eram divindades que protegiam não só as casas e os campos, mas os indivíduos, as cidades e mesmo certas colectividades», escreveu Leite de Vasconcelos, anotando ainda o facto de existirem Lares para viajantes, bairros e encruzilhadas. O mesmo é dizer que estes deuses deveriam ser invocados onde quer que a vida do Homem pudesse vir a correr perigo. O apego a este deus protector não impedia a manutenção de cultos privados, praticados na própria casa, onde existiam lugares de eleição, os altares, para permitir a devoção familiar. Dos dezoito destes monumentos que a exposição apresenta, anote-se o facto de oito pertencerem à antiga cidade de Conimbriga, uma das mais importantes cidades romanas da Lusitânia. Mas, além do culto familiar, os romanos trouxeram a crença no mau olhado, a desgraça desejada pelo inimigo. É assim que surge o recurso à figa, ao amuleto de cariz fálico e ao chamado quadrado mágico.
Depois da arte (merece atenção o painel sobre o Triunfo de Baco) de Torre de Palma, em Monforte, o culto funerário — que passou a acolher o rito de inumação por influência cristã, abandonando a incineração — apresenta um conjunto de monumentos dos mais refinados, nos motivos decorativos e na perfeição da execução. Os mais expressivos são dois sarcófagos, um dos quais, destinado a um adolescente, que apresenta uma cena de vindima, uma das mais bem conseguidas imagens da realidade. No final, a presença cristã confronta-nos num epitáfio escrito numa placa datada já do ano 532, um tempo de declínio... O cristianismo já então teria «subjugado» o panteão dos povos lusitanos e da Roma pagã? Naquele momento de mudança, sob a autoridade de um Deus único, em que é que alterou o quotidiano dos cidadãos da Lusitânia? Talvez ainda não esteja tudo contado, tudo esclarecido, como o não está este tempo de divindades quase servidas ao bel-prazer dos apetites e das necessidades mais prosaicas dos crentes, e que agora o MNA se propõe levantar o véu que ainda o oculta.

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Imagem colocadaImagem colocadaImagem colocada Constutores de museus Imagem colocadaImagem colocadaImagem colocada
Um museu deveria ser entendido como uma casa funcional, defendem os arquitectos Carlos Guimarães e Luís Soares Carneiro (à direita)

Poder-se-ia escrever que a originalidade da exposição «As Religiões da Lusitânia» reside na viagem que ela permite fazer ao imenso panteão que persistiu até à chegada do cristianismo, no território a que hoje chamamos Portugal. Mas a iniciativa do Museu Nacional de Arqueologia (MNA) revela uma outra aventura: dois arquitectos do Porto, Carlos Guimarães e Luís Soares Carneiro, decidiram erguer um «edifício» no interior do antigo dormitório dos Jerónimos, para acolher os sinais dos deuses. A cor da pedra das aras, das esculturas, dos altares, dos monumentos funerários e dos mosaicos é sublinhada por uma imensa parede de metal ondulante, cinza escuro, a percorrer os oitenta metros de comprimento da galeria que acolhe a mostra. É nessa parede que um conjunto de lápides, «como um calendário, marca o tempo histórico da exposição, estabelecendo a continuidade das restantes peças, dispostas ao longo da sala», diz o arquitecto Carlos Guimarães, sublinhando que nenhum dos motivos decorativos, como as nervuras manuelinas da cobertura do convento, deixarão de ser reconhecidas pelo olhar. Do lado oposto, uma sequência de estruturas do mesmo material desenvolve-se na oblíqua, fazendo lembrar uma construção gótica. É aqui que se desenvolve a informação temática, sobre cada um dos tempos da exposição.
Por sua vez, o piso sobrelevado retira o peso da construção original do dormitório, criando um ambiente de novo andar, numa sala à qual se tem acesso pelo piso natural, pelo lado do templo conventual.
Carlos Guimarães é o único arquitecto português com uma tese de doutoramento em museologia. O seu primeiro olhar para as «coisas da arqueologia» foi-lhe sugerido, há quase vinte anos, pela escavação da antiga cidade de Tongóbriga, hoje aldeia do Freixo, no Marco de Canavezes. Depois, o convite para a construção de raiz de um museu, o D. Diogo de Sousa, em Braga, provocou interrogações sobre o modo como os museus são imaginados e concebidos. Reconhecendo «o esforço dos últimos dez anos feito em Portugal no sentido de melhorar os espaços museológicos», Carlos Guimarães admite que «há um entendimento que ainda não foi interiorizado: um museu deve ser uma casa funcional, para ser usufruída, como a própria habitação, estando naturalmente cada coisa no seu lugar». Por isso é que não o incomoda o facto de muitos museus portugueses terem sido instalados em conventos, como aconteceu com o MNA. É que, defende, «os conventos são casas normalmente bem estruturadas. Por isso, é apenas preciso pensar que ali podem ser colocados ‘objectos’ para serem utilizados pelo olhar».
Mas não é apenas Carlos Guimarães quem se especializa em «casas» de fruição artística. Luís Soares Carneiro, responsável pela construção do novíssimo Teatro Gil Vicente, em Barcelos, está a terminar a sua tese de doutoramento em teatros. Também a primeira que se faz em Portugal. «Basta pensar que é de casas que estamos a tratar sempre», diz Carlos Guimarães, com um sorriso de ironia...

FONTE: Expresso

tens mais informação no google.pt, nesses sites que o dreamer referiu...
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